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QUIMERA: possibilidades estéticas, artísticas e de resistência queer nos espaços regionais

  • Foto do escritor: Giovanni Almeida
    Giovanni Almeida
  • há 2 dias
  • 8 min de leitura

Por Giovanni Almeida


A comunidade LGBT+, historicamente, forma movimentos de vanguarda em inúmeros campos da pesquisa e da expressão, como nas artes, no design e nos meios de comunicação, criando possibilidades estéticas que refletem suas vivências e modos de enxergar o mundo. Porém, mesmo com um notório avanço sobre os direitos das pessoas LGBT+ no Brasil e no mundo, como a criminalização da LGBTfobia, retificação de nome e de gênero de pessoas trans, ambulatórios focados na comunidade trans e proteções para essa comunidade em mídias televisivas e digitais, o reconhecimento sobre as contribuições nas áreas das artes, comunicação e pesquisa está longe de ser ideal, especialmente nos espaços regionais e interioranos, como o Vale do Paraíba. Assim, pensar sobre essa presença e ações nestas localidades, perpassadas e auxiliadas pelo design e divulgação científica se fazem urgentes e essenciais.


Antes de tudo, o que é a Arte Queer?


O termo queer, frequentemente associado à comunidade LGBT+, é uma palavra da língua inglesa que significa “estranho, peculiar ou excêntrico” (tradução livre da definição de Cambridge Dictionary), utilizada, inicialmente, de forma pejorativa a pessoas que não obedecem às normas de gênero e sexualidade. BUTLER, em seu livro “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” (1990), reflete sobre essas normas e como as pessoas que não a obedecem subvertem a própria definição desses termos, mostrando como o gênero e sexualidade estão, na verdade, ligadas a uma performatividade imposta, além dessas pessoas, por mais que não necessariamente LGBT+, sofrem com essa imposição, originando a Teoria Queer.


Posteriormente em “Gender as Performance” (2013), a autora aprofunda sobre essa performatividade, utilizando como exemplo artistas que, ao longo da história, dobram esses conceitos e criam possibilidades estéticas a partir do questionamento, da arte e até do escracho. Esses artistas, a partir de 1860, começam a ser chamados de “Drags”.


A arte Drag, que se baseia na performance exagerada, artística e caricaturada de papéis de gênero, vêm ganhando os holofotes nos últimos tempos, por conta de sua extravagância e mensagem política, sendo uma das principais vanguardas artísticas da comunidade LGBT+, junto da cena Ballroom (Bailes) e influências sobre as demais artes. A arte drag possui subcategorias que evidenciam um foco visual e crítico, sendo as principais: Drag Queen (utiliza estereótipos visuais femininos para a caracterização), Drag King (utiliza dos estereótipos visuais masculinos para a caracterização) e Drag Queer (utiliza ambos os estereótipos visuais, do masculino e feminino, obtendo uma estética mais andrógena e/ou monstruosa). No Brasil, essa arte se inicia com o nome “Transformismo”, sendo resgatado pelas futuras gerações de artistas a nomenclatura como homenagem às “Transformistas” que iniciaram esse ofício.


Elaborado pelo autor.


Desafios da Arte Queer e Comunidade LGBT+


Mesmo com o início da visibilidade e inclusão, a comunidade LGBT+ e suas expressões de arte ainda são malvistas e marginalizadas socialmente. Isso ocorre, em partes, devido à falta de divulgação nos veículos de comunicação, que não convidam esses artistas para apresentações, entrevistas, ensaios fotográficos e outras intervenções editoriais e midiáticas que evidenciem suas contribuições, vicências e existências. Além disso, as informações ligadas a este público não são tão divulgadas, principalmente no interior do país. Um exemplo disso é aqui no Vale do Paraíba, região do interior de São Paulo em que casos de estranhamento e agressão ainda são muito fortes. Neste texto ressalto que não existem informações concretas e numéricas acerca da população LGBT+ no Vale do Paraíba, dado ao fato de que as leis que criminalizam a LGBTfobia ainda são recentes no Brasil.


O fato de não haver informações deste tipo ressalta a necessidade de meios que deem visibilidade à comunidade e seus artistas. Há, porém, poucas informações sobre casos específicos, como um divulgado pelo site G1, da TV Vanguarda, em abril de 2023, contra a artista Miss Drag Queen, que foi vítima de agressão física e verbal em São José dos Campos motivada por LGBTfobia. Assim é possível enxergar que, por não haver quase nenhum veículo em que a comunidade e seus artistas são representados, as pessoas têm pouca consciência sobre estas vivências que, também por outras razões, acabam resultando em casos de agressão como o relatado, além da invisibilidade desses de artistas e pessoas LGBT+/queer no geral.


Design como Resistência

Elaborado pelo autor.


Nas últimas décadas, o design vem sendo utilizado como forma de protesto, de comunicar ideias que se distanciam da lógica produtiva tradicional. No Brasil, este caráter mais engajado do design ganha força durante o período da ditadura militar (1964-1985), onde o design foi parte integrante dos processos de mudança globais que estavam acontecendo no período, e surgiram novas frentes que rompiam com o racionalismo predominante, segundo MELO (2006). Nesse período, a música, junto do teatro e o cinema, formaram uma frente contra o regime. Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, por exemplo, criavam capas de álbuns para cantores como Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil, onde utilizavam experimentações com colagens e cores vibrantes que adicionavam um senso de brasilidade e inovação visual, oriundos da psicodelia. Esse compilado de artistas é exibido na exposição “Gráfica Poética” que exibe uma produção artesanal da era pré-digital, incluindo: 40 obras físicas (como capas de 28 discos, cartazes, livros e revistas) e vídeos (aberturas e créditos de importantes filmes do cinema nacional). Ambos colaboraram com outros artistas em seus projetos gráficos, como Gal Costa (“FA-TAL, a todo vapor”) e CAETANO e GIL (“Barra 69: Ao Vivo na Bahia”).


Nesse contexto, pessoas LGBT+ também utilizaram dos meios de comunicação, da arte e do design como resistência. A título de exemplo, no trabalho de Ney Matogrosso, tanto em seus trabalhos solos, como em seus trabalhos com o grupo Secos & Molhados, a indumentária usada pelo cantor em suas apresentações, principalmente, o ato de pintar todo o rosto com cores fortes, que mascaravam a pessoa por trás daquele personagem, chamavam a atenção, utilizando da androgenia e da performatividade exagerada como um afronte, segundo POSTIGUEL (2014). Essas características eram evidenciadas pelo design de seus discos, onde frequentemente utilizavam referências que, hoje, interpretamos como queer, algo estranho e desafiador.


Elaborado pelo autor.


Em uma entrevista dada ao programa Ambulatório da M.O.D.A., 2025 (https://www.youtube.com/watch?v=ojdltB-M1Zw), como também mostrado no filme “Homem com H” (2025, Esmir Filho), Ney conta sobre como um encarte do seu disco “Feitiço” (1978) afrontou o regime. Nele, estava uma foto do cantor, praticamente nu, rodeado por flores, sendo esse encarte exposto em uma loja de discos. Segundo o próprio Ney, censuraram o disco, colocando-o em sacos pretos, para limitar o acesso sobre as cópias, porém, isso acabou gerando uma certa “aura” sobre esse trabalho, fazendo as pessoas comprarem mais do disco.


Trazendo para o campo da resistência na regionalidade, Ney Matogrosso também evidencia essa possibilidade. Na música “Homem com H”, o cantor traz uma nova interpretação sobre a música, originalmente de Antônio Barros. No contexto, onde a música era um clássico regional paraibano da década de 1970 que exaltava uma masculinidade tradicional, Ney a interpreta como um deboche a essa noção primária de masculinidade, mostrando que a reinterpretação e a dobra de clássicos já estabelecidos das regionalidades brasileiras podem ser um caminho e um convite a reflexão, mostrar uma nova faceta de algo antes concreto.


Experiência como Artista e Designer


Para o meu Trabalho de Graduação (TG) no curso de Design Gráfico pela Universidade de Taubaté (UNITAU) em 2024, desenvolvi, junto de Helison Marcos Moreira, João Gabriel de Souza Pereira e Rebeca Mota Silveira Dias, a QUIMERA, uma revista de arte e criatividade que alia as criações da comunidade LGBT+/queer e a regionalidade Vale-Paraibana. Para a visualidade, utilizamos como referência primordiais o movimento punk e o trabalho de Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, adaptando elementos interioranos do Vale do Paraíba, como os tecidos floridos de chita, com a arte drag. Como resultado, conseguimos um trabalho que mobilizou a o Departamento de Comunicação e Negócios (CEN) e incentivou outros estudantes a continuarem com trabalhos na mesma temática, como um trabalho de Programa ao Vivo do curso de Produção Audiovisual que falava sobre Sustentabilidade e a Arte Drag (a ser gravado no mês de junho). Para essa edição da revista, para o TG, convidamos o Drag King Gael, artista de Caçapava, SP, que utiliza também desses conceitos e plataformas para construir sua persona, realizando uma parceria com esse artista da região e que, por meio dele, surgiu o interesse de outros artistas do ramo a realizar também essas parcerias conosco, em possíveis futuras edições.


Elaborado pelo autor.


Nos meus trabalhos como artista, designer e drag, eu exploro essas possibilidades estéticas e reflexivas a partir de uma pesquisa sobre o corpo, a cultura e a natureza. Em meus trabalhos mais recentes, estabeleço um diálogo entre a Teoria Queer e o trabalho do teórico GIL sobre a monstruosidade (Monstros, 2006), que explora os monstros como algo que não conhecemos, que merece desdenho e represálias por representarem um medo inerente social, que é influenciado pela cultura e o modo de pensar das civilizações, o monstro como um sujeito em constante devir, transformação e transgressão. Tornar alguém um monstro não é simplesmente pelo medo enquanto sentimento, e sim algo que é estranho e que não seguem às normas sociais estabelecidas. Esta monstruosidade está fortemente associada aos estudos de BUTLER, e é isso que tratei em minha última exposição individual “O Que Escondem as Conchas”, com um pano de fundo da água, elemento que representa a fluidez e o mistério.


Elaborado pelo autor.


Assim, a possibilidade de resistência e existência da arte queer nos espaços regionais é existente, e pode ser intensificada pelo Design em suas múltiplas facetas, para comunicar ideias, convidar a reflexão e instigar o estudo sobre as necessidades da comunidade LGBT+, adaptando a linguagem e elementos interioranos como forma de aproximação entre o público e as formas de arte.


Referências e materiais consultados:


BRANCO, Felipe Castello; COSTA, Eduardo Augusto. Design e resistência: a produção multifacetada dos movimentos de oposição à ditadura militar no Brasil. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/arcosdesign/article/view/86921. Acesso em: 18 mai. 2025.

BUTLER, Judith. Gender as performance. In: A critical sense. Routledge, 2013.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Civilização Brasileira. 2018.

CAMBRIDGE DICTIONARY. Meaning of queer in English. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/queer#google_vignette. Acesso em: 17 mar. 2025.

G1. Homem é brutalmente espancado em São José dos Campos; polícia investiga o caso. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2023/04/14/homeme-brutalmente-espancado-em-sao-jose-dos-campos-policia-investiga-o-caso.ghtml. Acesso em: 09 set. 2024.

GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio d'Água. 2006.

HOMEM com H. Direção de Esmir Filho. Paris Filmes. 2025.

PALOMINO, Erika. Babado forte: 35 anos de cultura jovem no Brasil. São Paulo: Ubu Editora. 2024. (Reedição/atualização do livro Babado Forte: Moda, Música e Noite, 1999 da autora).

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. Movimento Punk. Disponível em: https://www4.pucsp.br/cedic/semui/colecoes/movimento_punk.html.

POSTIGUEL, Danilo. Ney, a construção e a confrontação de uma identidade: o Matogrosso. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 1, n. 28, 2014. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/contemporanea/article/download/9362/9642/42298. Acesso em: 18 mai. 2025.


Sobre o autor

Giovanni Almeida é formado em Design Gráfico pela Universidade de Taubaté (UNITAU), atuante no campo das artes enquanto artista multidisciplinar, desde 2019, e professor, desde 2023. Em suas pesquisas artísticas e acadêmicas, procura estudar a relação entre o corpo, a cultura e a natureza, com uma perspectiva engajada socialmente e investigando o queer e a sustentabilidade na cultura popular brasileira, tendo sido sua primeira exposição individual, "O Que Escondem as Conchas" (2025), concebida com esses eixos temáticos. Atua como artista drag na região, com o nome artístico "Apolo", aliando esse trabalho performático com suas pesquisas e o mesclando com a fotografia, a estética e o design como propulsores dessa arte. Atualmente está participando do Programa de Iniciação à Docência (PID) pela UNITAU, no curso de Design Gráfico, na disciplina de Fundamentos do Design.

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